As três lacunas das organizações - Parte 1
Cuidado com o vão entre a plataforma e o vagão

A organização estava letárgica mas também cheia de iniciativas frenéticas. As pessoas estavam trabalhando tanto que o RH estava seriamente preocupado sobre as questões de equilíbrio entre trabalho e vida pessoal e potenciais burn-outs. Entretanto, todas essas iniciativas não estavam causando o impacto esperado nos resultados da empresa.
As receitas estavam caindo, as margens desaparecendo, a satisfação lá embaixo. Durante uma reunião da liderança para conseguir encontrar maneiras de sair dessa crise, mais iniciativas foram adicionadas a uma lista substancial de objetivos de longo prazo, objetivos de médio prazo e prioridades de curto prazo. Antes da reunião essa lista já somava 11 objetivos e prioridades e no final da reunião se tornaram 17.
A situação parecia ser bastante complexa. Havia incerteza sobre as relações causais entre os elementos que os estavam colocando naquele loop e o que fazer sobre eles. Eles deveriam cortar custos ou investir em crescimento? Ou os dois? Havia incerteza sobre o que realmente era importante. Para resolver essa incerteza, as pessoas faziam reuniões para definir e analisar o que estava errado. O resultado mais comum dessas reuniões era descobrir mais problemas, o que aumentava mais ainda a incerteza.
“The art of action - Stephen Bungay”
Esse exemplo que Bungay nos traz em seu livro (recomendo muito a leitura, pena que só tem em inglês) é bastante atual, mesmo que o livro tenha sido escrito em 2011. Os resultados esperados não são atingidos apesar de todos na empresa estarem trabalhando muito. Todo dia aparece um problema novo, criado por alguém que nem mesmo validou se é um problema ou não. Aquela ótima ideia que vai salvar a todos!
Você já se pegou num cenário desses? Seu chefe disse que você precisava fazer algo. Seu par falou que era muito importante abrir outra iniciativa. Alguém de outra área teve uma ótima ideia que vai trazer inovação para a empresa. E ninguém consegue ao certo responder “Por que isso é importante para o negócio? Em que ponto se cruza com a nossa estratégia? E aliás, qual a nossa estratégia?”.
Segundo Bungay, isso acontece por conta da fricção, que é uma característica inerente humana. De um modo bem simples, fricção é o conjunto de coisas que podem acontecer e que não necessariamente conseguimos prever. Imagine que você vai viajar e ao chegar no hotel, ele está lotado porque teve um erro no sistema. Não é algo que você consiga prever, somente diminuir.
Em sistemas complexos adaptativos como empresas, onde o sistema pode se adaptar de acordo com as interações que nele acontecem, a fricção é bastante aumentada, porque estamos falando de interações humanas. Esse excesso de fricção faz com que toda empresa tenha lacunas entre suas interações, que Bungay resume em seu livro como três principais: do conhecimento, do alinhamento e dos efeitos.
As lacunas expostas
Identificar as lacunas é relativamente simples. A lógica é a seguinte: toda empresa tem ciclos de planejamento estratégico, execução da estratégia que foi criada no planejamento e então análise e coleta dos resultados. Algumas empresas têm ciclos menores, outras maiores, mas no geral, todas funcionam dessa forma.
Pois bem, quando estamos planejando, estamos fazendo um exercício futurístico sobre o que queremos atingir depois de algum tempo. Planejamos de acordo com as informações e com o conhecimento que temos ali no momento, que por si só é limitado, o que faz com que nossos planos sejam imperfeitos. Aqui temos a primeira lacuna
Lacuna do conhecimento: A diferença entre o que nós gostaríamos de saber e o que nós realmente sabemos.
Depois que o planejamento é feito, é o momento de alinhar com a empresa toda qual é a estratégia definida e direcionar todos para que a executem. Alinhamento, como sabemos, é uma das coisas mais complexas de se ter em uma empresa, principalmente quando a empresa cresce. Por isso, as ações nem sempre vão ser na direção daquilo que planejamos. Aqui temos a nossa segunda lacuna
Lacuna do alinhamento: A diferença entre o que nós gostaríamos que as pessoas fizessem e o que elas realmente fazem.
Como nossos planos são imperfeitos, nem sempre nossas ações são as planejadas e como uma empresa é uma ambiente imprevisível, nem sempre temos os efeitos que esperamos. Eu diria que na grande maioria das vezes não temos. Aqui temos nossa terceira e última lacuna
Lacuna dos efeitos: A diferença entre o que nós esperamos que nossas ações atinjam e o que elas realmente atingem.
A imagem a seguir mostra as três lacunas e suas relações

Bungay enquadra as três lacunas como um sistema de causas, a relação de causa e efeito que explica porque existem diferenças entre aquilo que desejamos e aquilo que atingimos de fato. Nas empresas isso acontece o tempo todo. Você já deve ter entrado em reuniões para entender o que estava acontecendo para que o resultado não viesse, certo? Todas as lacunas são resultado da fricção existente nas empresas.
Mind the gaps
Quanto maior é uma empresa, maior é o seu grau de complexidade. Isso acontece porque o número de interações possíveis entre as pessoas cresce rapidamente de acordo com o número de pessoas, quantidade essa regida pela fórmula n*(n-1)/2 (Lei de Metcalf).
Quanto maior a complexidade, maior a fricção e maior podem ser as lacunas. A única maneira que faria com que essas lacunas não existissem seria não ter nenhum tipo de fricção, o que se prova impossível, porque mesmo que um ser humano pudesse enxergar e controlar todas as variáveis de um ambiente complexo (o que tem se provado impossível, no geral conseguimos controlar somente 4 variáveis por vez individualmente), teríamos que ser capazes de prever o futuro. Afinal, como vamos saber se amanhã a Amazon cloud vai cair e levar metade da internet com ela?
Sabendo que não vamos conseguir controlar as lacunas e que elas são o principal motivo para que os resultados esperados não venham, o mais importante é saber identificá-las e estruturar a organização de uma forma que elas possam ser minimizadas. Esse é o primeiro passo para conseguir evoluir sistemicamente a organização como um todo.
Como estamos falando de um sistema complexo, precisamos então de uma abordagem sistêmica para conseguir minimizar as lacunas. E é exatamente nesse ponto onde as empresas mais têm dificuldades, na verdade a maioria delas fazem exatamente o oposto de uma abordagem sistêmica, elas enrijecem ainda mais a estrutura, focando nas pessoas e não no sistema.
Ao se deparar com a lacuna do conhecimento, as empresas injetam e demandam mais informações na estrutura na esperança de que mais informações gerem planos “mais perfeitos”. Alguma vez uma das lideranças da sua empresa queria saber exatamente os detalhes de uma entrega, detalhes bem táticos, como por exemplo critérios de aceite de uma história?
Ao se deparar com a lacuna do alinhamento, o que a liderança começa a fazer é microgerenciar. Em sua essência, microgerenciar significa dar instruções detalhadas, como se as pessoas fossem robôs programáveis. Eu mesmo já passei por vezes em que a liderança queria definir os detalhes de uma implementação.
E ao se deparar com a lacuna dos efeitos, o que a liderança faz é começar a dar ordens diretas. Realmente controlar diretamente o que as pessoas fazem. Já implementou algo que você já tinha validado que não traria valor nenhum para o usuário, mas mesmo assim teve que fazer?
Informações detalhadas, microgerenciamento e controle direto não vão diminuir as lacunas, pelo contrário, tem grandes chances de aumentá-las e muito, pois não são abordagens sistêmicas. O foco precisa ser nas interações e não nas pessoas.
Bungay nos mostra uma possível solução para as lacunas, que ele chamou de “Directed Opportunism” (Oportunismo dirigido em tradução livre), o qual vou demonstrar e atualizar na parte 2 desse texto.
Já identificou as lacunas na sua organização? Então te aguardo na parte 2!