As três lacunas das organizações - Parte 2
De boas intenções o mundo está cheio
Como herança das duas primeiras revoluções industriais (onde a última se consolidou após a segunda guerra mundial e seus efeitos ainda sentidos nos dias atuais) muitos (senão quase todos) negócios foram criados ainda considerando os modelos das fábricas onde praticamente só existiam máquinas e as pessoas eram como se fossem suas extensões destas, realizando tarefas com ciclos repetitivos.
O efeito que essa herança nos causou foi que as pessoas que mandavam (gerentes e diretores, liderança ainda era uma palavra de uso escasso) enxergavam as outras pessoas como robôs trabalhadores, numa abordagem essa endossada com muita força pela teoria da Gestão Ccientífica de Taylor, eternizada em seu livro The Principles of Scientific Management, publicado em 1911, onde ele elenca três premissas para a gestão de pessoas nas empresas:
- Em princípio é possível saber tudo que você precisa saber para conseguir planejar o que será feito.
- Quem planeja e quem executa devem estar separados.
- Só há um caminho certo.
Para quem leu (e também quem não leu, quero acreditar!) a primeira parte deste texto, sabe que essa teoria está totalmente desatualizada. Apesar da teoria de Taylor ter mais de 100 anos, ela ainda é vista em muitas e muitas organizações, que tratam as pessoas como se elas fossem robôs programáveis e acreditam que realmente há somente um caminho certo a se seguir. No geral, o caminho da pessoa que detém o poder dentro da organização.
O problema nisso tudo? São vários: desde pessoas desmotivadas, pouco produtivas e doentes até uma grande quantidade de dinheiro sendo jogada fora e uma quantidade maior ainda de impacto que poderia ser causado no mundo e não é. Bungay em seu livro mostra outra maneira de gerenciar uma organização, que apesar de parecer óbvia, precisa ser falada.
Oportunismo dirigido
Para algumas pessoas, a palavra oportunismo pode ter um sentido negativo, mas aqui está o primeiro ponto que Bungay deixa claro em seu livro: ele não estava sugerindo como solução para que não houvessem mais hierarquias nas empresas, mas sim que essas hierarquias e a estrutura organizacional funcionassem de uma outra maneira.
Por isso ele deu o nome oportunismo, pois se pensarmos na maneira como as pessoas se organizam nas empresas, elas estão o tempo todo tentando influenciar umas às outras para conseguirem trazer resultados, ou seja, elas estão sendo oportunas a todo tempo. Nada de novo até aqui, é o que hierarquias são.
Bungay somente está tirando proveito de uma estrutura que já existe, para conseguir extrair o máximo das organizações, de uma forma intencional, por isso oportunismo dirigido, o qual ele define da seguinte forma:
A solução (oportunismo dirigido) constitui um sistema e sua atuação envolve fazer um loop. Envolve abandonar o modelo linear de desenvolvimento de um plano estratégico e, em seguida, implementá-lo. Em vez disso, há um ciclo de pensamento e ação. O horizonte no qual as ações são planejadas é limitado, os efeitos das ações são observados, refletidos e novas ações iniciadas. Assim, o ciclo pensar-fazer torna-se um ciclo de adaptação de aprendizagem. Uma organização que se comporta dessa forma observará que age rapidamente e continua ajustando o que faz. Portanto, o modelo de estratégia de “planejar e implementar” torna-se um modelo de “fazer e adaptar”.
Você pode estar pensando: “Mas Pablo, não é uma solução óbvia? Já que não podemos prever o futuro, o ideal não é diminuir o intervalo das interações e ir aprendendo o que está dando certo ou errado?”. Pois bem, o que é simples nem sempre é fácil e se lembrarmos da Lei de Metcalfe, já sabemos que fica cada vez mais complexo quanto maior é a empresa.
Mas sim, a solução para minimizar ao máximo as lacunas está pautada basicamente em estruturar a organização de uma forma para que as pessoas consigam ter autonomia suficiente para tomar decisões e corrigir o curso sem que tenha que submeter uma “carta” para aprovação ou pedir a benção do papa.
A imagem a seguir mostra um desenho de como a oportunismo dirigido interage com as lacunas para minimizá-las

A palavra intenção na imagem é o que Bungay chama de intenção estratégica e para os dias atuais, o que chamamos de estratégia.
Visão, intenção estratégica e duplo alinhamento
O primeiro passo para minimizar as lacunas do conhecimento e do alinhamento é ter uma visão da empresa bem definida. A visão é o que vai direcionar a empresa, é o que vai (ou deveria) nortear todas as decisões, principalmente as estratégicas. Uma empresa sem uma visão de longo prazo bem definida vai acabar seguindo muitas direções diferentes e não vai de fato chegar em nenhuma delas.
De posse de uma visão clara, o segundo passo é criar uma estratégia. Essencialmente, uma estratégia é a definição de uma intenção do futuro. Estamos num estado X hoje e queremos chegar num estado Y. Logo, uma intenção estratégica é uma decisão por seguir uma direção para mudar um estado dentro da empresa. Em cada ciclo que definimos e executamos uma intenção estratégica, apostamos que ela está nos levando mais próximo da nossa visão de futuro.
O terceiro passo, o que eu considero mais importante, é que é fundamental que tanto a visão quanto as intenções estratégicas sejam comunicadas com exaustão e sejam relembradas com frequência. No dia a dia, é muito fácil sair da direção com “ideias maravilhosas” que temos o tempo todo.
E por último, é preciso garantir que as pessoas entenderam a visão e a estratégia. Aqui as empresas erram constantemente, por assumirem que todas as pessoas na empresa vão saber ler termos econômicos e técnicos. A maneira que Bungay sugere para conseguir que isso aconteça é o que ele chamou de backbriefing e eu não achei uma expressão melhor para traduzir para o português do que duplo alinhamento.
A ideia com o duplo alinhamento é garantir que a estratégia global de negócio realmente esteja conectada com as estratégias locais dos times, numa relação de causalidade, ou seja, ao atingir as estratégias locais, a estratégia global se movimentará para ser atingida também.
Além disso, para que haja uma estrutura de aprendizado ativa, os ciclos de planejamento para as estratégias locais precisam ser menores e não podem ser escritos em pedra, ou seja, devem ser reajustados com o aprendizado obtido das análises das ações e os resultados obtidos. Ao menor sinal de que a direção decidida foi a errada, é fundamental aprender o que deu errado e corrigir o curso.
A imagem a seguir ilustra o conceito

Como vocês podem ver, toda estratégia se parece com uma escada, onde no tempo geralmente temos a definição de crescimento do negócio, que se quebra para um degrau abaixo de intenções estratégicas para atingir esse crescimento, que se quebra para KPIs mais locais, que se atingidos, causam o atingimento das intenções e que se atingidas, levam a empresa ao crescimento previsto. O tamanho dessa escada vai depender do tamanho da empresa. Quanto maior, mais degraus e consequentemente mais complexa a estrutura.
O duplo alinhamento se inicia no planejamento anual, onde a quantidade de crescimento é definida bem como as intenções estratégicas e depois em cada um dos ciclos de inspeção dos resultados locais. Para aqueles que estão se perguntando, sim, lembra muito OKRs e Flight Levels (a teoria de Bungay é baseada nos MBOs do Andrew Grove).
Times autônomos
Para minimizar a lacuna dos efeitos, Bungay não enxerga outra forma a não ser dar autonomia para as pessoas. Uma vez que não podemos prever o futuro, as pessoas precisam de autonomia para conseguir ter uma resposta rápida aos efeitos de suas ações.
Acontece que autonomia sem direcionamento e clareza das responsabilidades e dos papéis não vai minimizar as lacunas, ao contrário, tende a piorá-las porque, como vimos na primeira parte, os efeitos dos resultados esperados não chegarem é um dos principais motivos das lacunas se manifestarem nas empresas. Dificilmente os resultados virão se os times estão mirando em direções distintas, muitas vezes conflitantes e até opostas.
Autonomia não é simplesmente dar liberdade para as pessoas tomarem decisões. Para que os times consigam ter graus de autonomia, a estrutura da organização precisa estar preparada para isso. Logo, ter uma estratégia sólida, uma liderança que acredita e confia no trabalho das pessoas, pessoas com o conhecimento necessário para saber ler o negócio e a estratégia e garantir que existe clareza, transparência e alinhamento são pré-requisitos básicos para ter times autônomos.
As pessoas querem autonomia, elas querem mais responsabilidades. O que elas não querem é ser cobradas pelo que não estava claro. A responsabilidade para fazer com que a autonomia aconteça é 100% da liderança.
Um exemplo prático
Agora que vimos os elementos necessários para minimizar as lacunas, vamos unir todos eles num exemplo prático. Vamos imaginar que temos uma empresa de entrega instantânea de verduras e legumes frescos e orgânicos, a Salada rápida. A visão da empresa que estava na cabeça da CEO foi a seguinte
“Trazer mais saúde para as pessoas do mundo todo através da praticidade, velocidade e acessibilidade.”
Uma boa visão sempre comunica a intenção de estado da empresa no futuro (trazer mais saúde para as pessoas do mundo todo) e o direcionamento para fazer isso (através da praticidade, velocidade e acessibilidade).
Quando olhamos para a visão, entendemos porque os alimentos que são vendidos são orgânicos, já que a empresa quer trazer mais saúde para o mundo. Também conseguimos entender porque são entregas instantâneas, uma vez que velocidade está no direcionamento.
De posse da visão de longo prazo, vamos assumir as seguintes informações que foram levantadas na reunião de planejamento anual da empresa para o ano 2021:
- A empresa está se preparando para a expansão internacional agora que já está presente em 80% dos municípios brasileiros. Prevê fazer isso nos próximos 2 anos e para isso precisa aumentar seu caixa, com um crescimento líquido de 120% ano após ano.
- Investimento de VC não é uma opção.
- Para conseguir o caixa necessário para a expansão, a empresa tem a intenção de expandir suas duas linhas de receitas principais: a de frutas orgânicas e a de saladas orgânicas no sul e no nordeste, onde as taxas ainda estão estáveis.
- A conta feita para 2021 foi aumentar em 100% o faturamento de frutas orgânicas na região sul e aumentar em 80% o faturamento de verduras orgânicas na região nordeste.
De posse dessas informações, ficam claras as duas intenções estratégicas que a empresa escolheu para 2021:

Aqui uma lição super importante: estratégia é sobre escolhas. Quanto menor a empresa, menos intenções estratégicas devem ser estabelecidas, pois toda intenção demanda investimento e, no geral, as empresas não têm dinheiro infinito, ainda mais quando tem restrições para lucro líquido e não tem investimento de VC para queimar.
Com as intenções estratégicas em mãos, é o momento de descer o próximo degrau na estrutura, criando KPIs locais que vão atingir estas intenções. O ideal é que essa quebra seja feita em colaboração das gestoras com as pessoas dos times.
Vamos assumir então que os obstáculos para atingir esses números já foram identificados (em algumas empresas, a responsabilidade de encontrar esses obstáculos é dos times de produto, falando com os usuários e analisando as jornadas) e são os seguintes:
- Para crescer o faturamento das frutas será preciso diminuir o tempo de entrega.
- Para crescer o faturamento das saladas orgânicas será preciso aumentar o número de clientes ativos e também a variedade de folhas.
Esses KPIs estratégicos são KPIs locais, os quais os times serão responsáveis. Dependendo da estrutura da empresa, podem ser times operacionais, de marketing e mais comumente nos dias atuais, os times de produto.
A imagem da escada escada estratégica ficaria da seguinte forma então

Vamos supor que a empresa utiliza OKRs, então a cada 3 meses irá inspecionar se os objetivos escolhidos estão de fato causando o aumento do faturamento das linhas de receita de frutas e saladas.
Se os objetivos locais estiverem sendo atingidos e as linhas de receita não estiverem crescendo, as nossas apostas foram erradas e os obstáculos são outros. Esse é então o momento de mudar, investigar mais profundamente os cenários, encontrar as próximas apostas locais e comunicar na estrutura acima. Se os objetivos locais não estiverem sendo atingidos, é o momento de entender o que está dando errado, reorganizar, evoluir e comunicar na estrutura acima.
O duplo alinhamento é fundamental, pois, como há uma relação direta de causalidade na escada, caso ela não aconteça, talvez será preciso reorganizar a escada toda. Também é importante que novas informações obtidas pelas pessoas que estão sempre em contato com os clientes subam na escada. Como muito bem falado pela Melissa Perri
Estratégia é algo que emerge de experimentação.
Essas novas informações também podem fazer com que a escada toda se reorganize, caso se provem oportunidades promissoras.
No final mude o sistema, não as pessoas
Uma sabedoria milenar que mudou meu modo de ver o mundo foi entender que não se mudam as pessoas. No máximo, elas mesmas se mudam e olhe lá. Por isso eu prefiro enxergar as organizações como sistemas.
Ao mudar a maneira como o sistema se organiza e as interações dentro dele, as pessoas que fazem terão que se adaptar ou então irão sair dele, pois é provável que não aguentem a força contrária que o sistema todo faz ao se adaptar a essa nova maneira de funcionamento.
A forma mais poderosa de se mudar um sistema é através da cultura. Cultura basicamente são regras que regem a maneira como um sistema funciona. Ao mudar essas regras, o sistema como um todo muda. Entender que toda mudança traz dores, mas que só as mudanças são capazes de trazer resultados diferentes, no final é o que vai determinar sucesso ou fracasso num mercado extremamente líquido e acelerado que nós vivemos.